Por uma questão de bom senso, decidimos deslocarmo-nos na véspera, Sábado dia 22, para o local onde estava montada a organização da prova.
As termas de Caldelas são um local bastante aprazível e foi com prazer que desfrutámos da frescura que se conseguia obter na mata que circunda as instalações das mesmas.
Após deixarmos a bagagem no nosso quarto, eu e a Carla fomos “esticar” as pernas e dar uma vista de olhos pela terra. O panorama é belo. O verde da vegetação é deslumbrante, no entanto, aos olhos de um corredor que sabia ir terminar a sua prova por ali, as serranias circundantes impunham já algum respeito.
Horas de contactar o Óscar e ala para as piscinas de Caldelas para levantarmos os nossos dorsais e rever companheiros de outras lutas. As caras são sempre as mesmas, e mesmo uns “quase principiantes” como a Carla e eu, já vamos tendo alguns atletas que cumprimentamos com amizade, como sejam a Dina e o Paulo Mota das Lebres do Sado, entre outros.
Após levantar o dorsal tenho a boa notícia do dia. O Óscar Marques decide participar na Ultra em vez da prova de 15 Km para a qual estava inscrito. Fico aliviado com o facto de ter companhia para tamanha estirada. Ficamos também a saber que o percurso teria 52 km em vez dos prometidos 50.
Após mais alguns dedos de conversa, são horas de irmos preparar o material a utilizar no dia seguinte. O nervoso miudinho vai aparecendo e aquela peça de equipamento que antes nos parecia a ideal, agora mostra-se aparentemente deslocada do contexto. Enfim, após longos minutos, lá tenho o “Camel” atestado com uma bebida hipotónica, frutos secos, umas barritas e cubos de marmelada. Além disso, acrescentei uns Ben-urons e uma magnesona.
Finalmente horas de jantar e mais umas voltinhas para descontrair que o sono teimava em não aparecer, apesar da estafa da deslocação desde Lisboa.
Após uma noite muito mal dormida, a rinite alérgica no máximo devido à alcatifa do quarto e a adrenalina a ser bombada nas veias quase não me deixaram “pregar olho”, às 07:00 lá fomos apanhar as camionetas postas à disposição pela organização para nos transportar até Lóbios, na vizinha Galiza, local de partida para a prova Ultra.
Em virtude do local e a hora de partida da Corrida da Geira, diferir da nossa, a Carla despediu-se aqui de nós, com os habituais votos de boa sorte.
Esta viagem teve uma duração de pouco mais de 1 hora. De vez em quando conseguíamos descortinar as fitas vermelhas e brancas, servidas para sinalizar o percurso da prova. Notava-se alguma excitação por parte de atletas mais experimentados do que nós ao aperceberem-se de certas passagens que teríamos de transpor mais tarde.
Lóbios tem a particularidade de junto ao rio que a atravessa ter uma piscina com água que brota quente das profundezas da Terra. Á hora que chegámos já bastantes pessoas se banhavam com deleite nessas águas.
Após a chamada do “centurião” Moutinho, os “legionários” juntaram-se defronte do palanque onde o nosso “César” Ribeiro proferiu o discurso incentivador às tropas que se preparavam para o grande desafio de percorrer, tal como há uns milhares de anos atrás as legiões Romanas o fizeram, a grande Via Romana, através do Gerês.
Nesta altura, o exemplo de serenidade do Óscar ajudou-me a manter a descontracção e a pensar com objectividade nas (muitas) horas que se iam seguir.
Finalmente é dada a ordem de partida aos bravos atletas.
Rapidamente o pelotão começa a alongar-se, primeiro para se ajustar à largura do carreiro percorrido, depois porque entramos numa zona de lameiro onde todo o cuidado é pouco para evitar uma queda mais disparatada logo no início da aventura.
Uma coisa ficou patente desde o início. A água ia ser a nossa companheira de percurso. Amiga ou não, dependia também de nós.
Ultrapassada esta zona, começámos uma longa subida em direcção à Portela do Homem, que assinala a fronteira que separa Portugal e Espanha.
Aqui, à saída do trilho esperava-nos o nosso centurião, sempre a incentivar os seus fiéis soldados, bem como o primeiro abastecimento líquido, providenciado pelo “César” Ribeiro.
Retemperados, iniciámos então a descida por um belo trilho que ia acompanhando o Rio Homem, até que chegámos ao 1º CP, colocado antes da elegante ponte em madeira que permitia a passagem por cima do rio.
Sabíamos pelo que nos tínhamos apercebido durante a viagem, que devíamos estar prestes a trocar a pacatez da floresta, pela aridez do estradão que circunda o lago onde se esconde no seu seio, a famosa aldeia comunitária de Vilarinho de Furnas.
Este estradão tem algumas subidas que abordamos com “ganas”. Estamos frescos e sabemos que temos de aproveitar a qualidade do piso para palmilharmos os km com alguma rapidez.
O único senão desta fase da prova, são os automóveis que insistem em circular e vão deixando à sua passagem uma poeira fina bastante incómoda para os corredores.
Após deixarmos o lago à nossa direita, abandonamos o estradão e começamos a descer para um trilho com piso bastante mais técnico onde está colocado o 2º CP.
A dificuldade do piso gera a aglomeração de um grupo de atletas. Aqui juntamo-nos a alguns membros da equipa das Lebres do Sado.
A beleza desta parte do percurso só foi desvirtuada pelos vestígios de fogo que a vegetação apresentava.
Sempre na peugada dos nossos amigos, nós e a Rosa Pratas que nos tem vindo a acompanhar desde o início do estradão, vamos tentando alargar a passada, o que me custou um valente tropeção que não deu em queda aparatosa por um milagre de equilíbrio, nota artística 10, pelos comentários de quem seguia atrás de mim.
Ultrapassada esta questão, chegámos a um casario onde deparámos com um belo tanque e uma fonte de onde brotava água fresca e límpida. Aqui os nossos companheiros vão-se embora, deixando-nos a retemperar na frescura da água e da sombra. Aproveito para reabastecer o “Camel” e ala que se faz tarde.
Nesta parte da prova, apanhamos um longo trecho de alcatrão. O Óscar começa a queixar-se de dores num pé e no joelho. Abrandamos a marcha, confesso que fiquei preocupado por já me estar a ver a fazer o resto da prova sozinho.
No entanto, assim que deixamos a estrada e reentramos no trilho, as dores deixam de apoquentar o meu amigo, também com a ajuda do Brufen entretanto por ele tomado.
Embrenhamo-nos de novo na floresta onde algumas surpresas nos vão surgindo,
Km após km, chegamos a novo abastecimento, onde comento para o Óscar que tinha acabado de bater um recorde. Nunca tinha corrido mais de 30 km, e estávamos com 31 já decorridos. Em jeito de brincadeira, comentámos que só faltava fazer uma meia-maratona, o que já não era novidade para qualquer um de nós, portanto, a partir dali ia ser tudo bem mais fácil.
Aos trilhos sucedem-se novos trilhos, uns ainda bastante enlameados, outros com grandes extensões de piso empedrado, o que vai massacrando as plantas dos pés que vão ameaçando murchar, perante tão maus tratos. Aceito o conselho do meu companheiro e começo a aproveitar os riachos de água que se vão atravessando no caminho para refrescar os pés e acalmar as dores. E não é que resulta? Disto não me vou queixar mais até ao fim.
Aproveitamos também para beber mais água e molhar os chapéus que recolocamos na cabeça, ainda a escorrer.
Consolo efémero, porque entramos em novo estradão sem sombras, onde o Sol impiedoso nos vai martelando sem dó.
No entanto, a beleza profunda, a imensidão da paisagem que se estende perante os nossos olhos, faz com que todas as barreiras sejam rapidamente esquecidas.
Lá estava a tabuleta a lembrar-nos que muito antes de nós, já outros tinham vencido aquelas dificuldades.
O estradão que seguimos, vai circundando os montes que delimitam o espantoso vale, numa zona que creio chamar-se Cruz Santa.
Ao fazermos uma curva, avistamos do outro lado, a cerca de meia-hora de distância, um atleta que circula já na estrada.
Ao chegarmos ao sítio onde o tínhamos avistado, deparamos com novo abastecimento. Creio ser este o local onde se dava a partida para a Corrida
Tomo um Ben-Uron porque as mazelas iam surgindo e recomeçamos a nossa marcha.
Mais uns quantos kms, ao atravessarmos um ribeiro mais largo, deparamos com umas famílias que aproveitavam as sombras para um belo piquenique, enquanto as crianças se divertiam dentro de água.
Espontaneamente, à nossa passagem, adultos e crianças levantam-se a um só e aplaudem batendo palmas e gritando:
- Força campeões. Vamos lá !!!
Confesso-me comovido ao meu amigo Óscar e aquela reação popular dá-nos novo ânimo, conseguirmos até correr uma bela e extensa subida.
A cerca de 12 km da chegada, atravessamos novo povoado e circulamos ao longo da estrada. Numa das bermas, segue apoiado no seu bordão, um velhote. Na cabeça, um típico chapéu de palha ajuda a proteger do Sol abrasador.
Contente por ver outro ser humano naquela paisagem deserta, sem me deter, pergunto ao senhor se Caldelas ainda fica muito distante, ao que ele responde que ainda é um bom bocado, interrogando-nos de seguida:
- É para lá que vos dirigis?
- Sim
- Mas então, porque não ides de carro? E de onde vindes?
- De Espanha, através do mato.
Aqui, o velhote fica com a certeza de que está a falar com dois perigosos maníacos fugidos de algum hospício e abana a cabeça, incrédulo.
Após este caricato episódio, chegamos ao penúltimo abastecimento, onde nos informam erradamente que faltam 9 km (na realidade faltavam onze), e referem que logo a seguir tínhamos uma bela descida pela frente. Esqueceram-se de algumas coisas pelo meio, mas já lá chegamos.
Uns metros antes de chegarmos ao referido abastecimento, vemos a sair desse local o atleta que antes levava cerca de meia hora de avanço. Isto animou-nos a prosseguir e a não perdemos muito tempo neste local.
Um quilómetro mais à frente, o Óscar vira-se para mim e diz:
Mário, acabaste de fazer a tua primeira maratona, e da maneira mais difícil !!!
Ao que lhe respondi que não devia haver maneiras fáceis de as fazer e, que agora já só nos faltava fazer o equivalente a uma S. Silvestre. Coisa para meninos…
Seguindo mais animados do que nunca, iniciámos a tal descida pronunciada, em estradão, no meio da floresta e vamos encontrar o atleta que perseguíamos, desolado por já não ter forças para mais.
Tentamos incentivá-lo a juntar-se a nós, o que até consegue fazer durante a descida, mas quando a mesma termina, após um cotovelo, depara-se uma “parede” com cerca de 600 metros e com 10% de inclinação, o que o leva a entrar de novo em desespero, deixando-se ficar para trás.
Vencida esta dificuldade, vamos sentido o cheiro a “meta”. Os km parecem demorar mais tempo a passar mas vencem-se sem muita dificuldade até que chegamos ao último abastecimento, a cerca de 7 km de Caldelas, onde estavam dois rapazes sentados calmamente a jogar Playstation.
O Óscar pergunta-lhes se havia mais alguma subida até ao fim, ao que um dos rapazes, virando-se para o monte com aspecto ameaçador que estava por trás deles, nos diz que já só faltava “aquilo”. Perante o nosso ar de incredibilidade diz-nos que estava só a brincar.
Desconfiados, e com razão, retomamos o caminho e em breve vemos o trilho a levar-nos para o Adamastor, perdão, o dito monte.
Esta foi sem dúvida, a pior parte da prova. A subida é muito extensa e inclinada. Quando termina, vamos circundando o topo do monte e deparamo-nos com o vale que escondia o nosso destino.
Temos oportunidade de avistar mais uma manada de cavalos antes de atacarmos uma longa e difícil descida, com piso muito mau, sobretudo para quem tinha já alguma fadiga física e mental acumuladas.
No fundo deste trilho, deparamo-nos com um oásis de verdura e uma fonte de onde brota a água mais deliciosamente fresca que já bebi na minha vida. Molho os joelhos, mato a sede, boné encharcado na cabeça e solto um “vamos” decidido. Parece que começámos agora a prova, tal a capacidade renovadora daquela água.
Percorremos uma longa vereda que segue encostada a um muro alto, passamos por uma latada abandonada e entramos na vila.
Ainda temos de vencer as difíceis quelhas empedradas, sprintamos por um estreito corredor e entramos na avenida principal.
Aqui somos incentivados, por outros atletas, que berram com entusiasmo os nossos nomes. Lá longe, estão a São e a Carla que nos vão fotografando. Quando chegamos mais perto, apercebo-me do ar aliviado da Carla ao ver-nos bem e a correr que nem uns desalmados em direção à meta.
Ali está ela, linda a magana, e bem no meio, está o centurião Moutinho à nossa espera, de braços abertos a dar-nos os parabéns por termos concluído esta prova bem dura.
Só depois me apercebo que a Carla tem o lado esquerdo do corpo todo arranhado e uma ligadura no cotovelo, fruto de uma queda aparatosa dada logo no início da sua corrida.
No entanto, diz-me com fundado orgulho, que tinha conseguido terminar a sua prova.
Em jeito de conclusão, deu-me um terrível gozo fazer este Ultra Trail. Achei o percurso bem estudado. Segundo testemunho dos corredores que também participaram nas edições anteriores, esta foi de longe a mais difícil, pelo percurso em si e pelo calor que se fez sentir.
Os abastecimentos estavam colocados estrategicamente e eram fartos em líquidos (água, coca-cola e sumos) e em sólidos, tendo sandes, marmelada e banana, além de barritas e bolos.
Link Fotos Geira 2010
Mário Marcelino
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